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vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino

poems by José Luís Peixoto in A Criança em Ruínas
 
quando nasci. esperava que a vida.
me trouxesse. a terra. quando nasci.
esperava que a vida. me trouxesse.
as árvores. e os pássaros. e as crianças.
quando nasci. tinha o mundo. todo.
depois dos olhos. depois dos dedos.
e não percebi. não percebi. nada.
nunca imaginei. quando nasci. que a  vida.
quando nasci. já era a escuridão. a escuridão.
em que estava. quando nasci.
 
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for 
tão distante, quando o frio responder com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.
vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino.
aquela casa tão grande com um quintal de galinhas
a morrerem ciclicamente. as malvas entristecidas
em canteiros já sem esperança. e em cada estrofe de
estar sentado perante a paisagem, o poema único e final.
as mulheres arrastam as tardes pelos versos,
como lembranças a arder em todas as noites da minha vida.
quem pode esquercer as tardes,
se os ramos das laranjeiras eram inesquecíveis? 
cada palavra possui um palmo desse quintal infinito.
 
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob conversas: fingir 
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes: 
ferros em brasa, fogo silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um 
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
 
eram as estrelas, caminhante,
o mapa que não soubeste decifrar
mas vais continuar
perdido para sempre.
vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino
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vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino

series of illustrations based on five excerpts from the book "A Criança em Ruínas" by portuguese author José Luís Peixoto

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